O desenho do futuro não está em nossas mãos.

Resenha de A promessa da sereia, de Gisele Servare.

“Clara pediu para não deixar ela esquecer da sereia.

Assinado: Stefan."

Sereias existem?

Da diversidade de definições que o Aurélio dá para a palavra mito, todas estão relacionadas à criação de um ser ou de uma história concebida no imaginário popular para explicar alguns fenômenos naturais, a existência de criaturas ou determinado costume de uma civilização. Segundo o professor Mircea Eliade, em sua obra Mito e realidade, em sociedades mais arcaicas, mitos representavam histórias verdadeiras de "caráter sagrado, exemplar e significativo".

Isso quer dizer que todo mito tem um fundo de verdade, ainda que representativo.

"E ela havia me lembrado de que, em algum lugar do mundo, havia partes de mim, espalhadas quase aleatoriamente como folhas ao vento."

A promessa da sereia conta a história de Clara e Tobi, que quando tinham cinco anos de idade, se perderam de suas respectivas famílias em uma floresta, onde tiveram um encontro com uma sereia e receberam dela um segredo como presente — tão valioso, que ambos esqueceriam o ocorrido por anos e o lembrariam no momento certo.

As duas crianças se separaram. E cresceram. Clara, alemã, seguiu sua vida complicada. Profissionalmente mal resolvida e vivendo o rompimento de seu noivado, decide voltar do Brasil à Alemanha para morar com os pais, os irmãos e os sobrinhos, a quem Clara vira apenas uma única vez até então.

Assim que Clara é recepcionada pela família, logo percebemos que sua relação com o pai (um ministro protestante) não é lá das mais calorosas. É quando percebemos que além de complicada, a vida de Clara é dolorosa.

"Não se esqueça de que esse é o seu verdadeiro eu. Fases ruins existem, problemas de percurso acontecem. Deixe as nuvens pesadas passarem. Faça chover. Se for uma tempestade, deixe-a cair, meu filho."

Tobi também seguiu. Diferente de Clara, Tobi perde sua família biológica dentro do intervalo de 28 anos do ocorrido com a sereia até o momento presente da narrativa. Nosso protagonista brasileiro encontra o amor em sua família adotiva.

A autora explora o conflito existencial do personagem, a sensação de não pertencer a lugar algum, ao mesmo tempo que se está em todos os lugares. Com essa alma de artista, Tobi encontra refúgio na música. Violoncelista de mão cheia, é integrante do sensacional quarteto Cello For Fun.

"Seria maravilhoso acreditar que alguém, mesmo que vivesse em outra parte do mundo, bem longe de meus passos, ainda mudaria o rumo de minha história e me daria a chance de viver o sonho de uma família, a minha família."

Clara e Tobi se reencontram por acaso, graças a uma rede social única, chamada Together.

Mas não esperem encontrar uma história de amor piegas.

Desde que começam a primeira conversa, tanto Tobi como Clara passam a atuar como peças espalhadas de um quebra-cabeça, que vão sendo encontradas, uma a uma, em suas vidas individuais. Inicia-se a jornada de nossos protagonistas ao autoconhecimento e cura.

"O chamado da vida para que eu procurasse minhas raízes ficava cada vez mais alto e eu precisava atendê-lo."

E o que essa história toda tem a ver com a lenga-lenga chata do início dessa resenha?

A sereia aqui se faz a representação mítica do não esquecer quem somos, do nós em essência. Clara e Tobi a conhecem crianças, quando ainda não conheciam o mundo tal como ele é, com suas durezas, maldades e desilusões. Como todo livro de Gisele Servare, este é um bálsamo em meio à caótica situação da vida como ela é.

Mas não se iluda: é impossível ler A promessa da sereia numa única sentada, dada a densidade psicológica do romance. Com certeza, um dos mais bem escritos da autora.