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Foto do escritorEliza Edgar

Boca violenta.

Análise de Virgínia Mordida, de Jeovanna Vieira.


"Do meu quarto, escuto as crianças no quintal, as matriarcas se trançando enquanto bebem vinho branco com pau de canela. Na cozinha, alguém puxa uma farofa de dendê, alguma das minhas tias, acho que a Dita. Tia Dita tasca caril em tudo. Sinto cheiro de caril. Fui escolhida para fazer as honras. Representar as mulheres da família, e dizer algumas palavras sobre a Benedita que abriu os caminhos para as outras cinco gerações de Beneditas e para a minha, que não tinha Benedita nenhuma."


Alguns livros existem para divertir. Alguns são escritos para entreter. Muitos são para sonhar e fazer esquecer o caos que é a vida e o mundo. Mas alguns livros são uma surra, das que você sai sem hematomas. Que te rasgam a alma de cima a baixo, que te ferem por dentro. Obras que te põem a pensar e a relembrar. A nunca esquecer.

É com doçura que se impõe os primeiros acordes de violência. E é numa obra incrível como a que trago hoje que a denunciamos.


"Nota mental: não subestimar, o homem gringo ainda é um homem."


Virgínia é uma mulher empoderada por seu autoconhecimento e constante encontro com sua ancestralidade. Mas isso não a impede de entrar num relacionamento abusivo. Relacionamento que não começou abusivo. Começou com pequenas solicitações de atos de amor e cresceu até o extremo, impensável e absurdo.


"Vó Benedita me dizia pra eu levantar da roda se um samba saísse atravessado, que era pra ninguém tomar nota do meu nome e me colocar como compositora de samba mal arranjado. Porque quando a roda está formada, quem toca caixa de fósforo está compondo também, com uma frase que seja. Por isso é que cada composição tem essa montoeira de autor."


Uma narrativa intensa, tecida com palavras certeiras e impactantes. Virgínia Mordida entrega a crueza da realidade de forma poética e dilacerante. De contramão a diversos outros livros sobre o assunto, o parceiro abusivo de Virgínia, Henrí, é como são muitos homens na vida real: carismático e persuasivo, bom de papo; um pouco impulsivo e sonhador. Mas, assim como um bolor (como bem diz Virgínia), Henrí vem impregnando-se na vida da moça, minando-a, tencionando apagar seus desejos e existência.

O livro explora esse relacionamento de maneira a não vilanizar Henrí, o que torna tudo mais assustador, dada a proximidade do personagem com parceiros reais, o que potencializa os acontecimentos com a protagonista.


"Perdoem se eu continuei agindo como se fosse possível suportar."


É uma leitura que recomendo não só pela relevância temática, mas também pela beleza com a qual é transcrita e a delicadeza com que é tratada. Digo, porém, que se trata de um livro direcionado a um público mais maduro e habituado à literatura de ficção.

O livro é concorrente ao Prêmio Kindle de Literatura de 2021. Li pelo KU.

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