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Foto do escritorEliza Edgar

Cheios, e tão vazios.

Análise de Insídia, de Roseane Sousa.

"Mas, na situação em que se encontrava, aquilo se tornara uma distração para os problemas, preenchendo seus dias com um pouco de emoção e lhe trazendo um falso conforto por pensar que havia pessoas com problemas muito piores que os seus."


Você que parou para ler este post, sugiro que realmente pare. Estabilize a vista, inspire fundo, solte o ar. Agora reflita: o que você está fazendo a essa hora na internet, rolando o feed da rede social? O que você está buscando exatamente?

O mundo consome cada vez mais conteúdo digital; o Brasil está no segundo lugar do ranking dos países que passam mais tempo conectados, conforme uma das últimas atualizações das pesquisas sobre o assunto.

E isso não é obra do acaso. A internet tem sido o refúgio de muitas pessoas nos dias loucos em que vivemos. Cada vez mais distantes das pessoas de carne e osso, compartilhamos afeto com a tela do celular, tablet e computador. E por não estarmos acostumados a sentir as consequências da vida virtual no cotidiano, o livro que trago hoje perturba tanto.


"De unhas perfeitas com uma cor discreta, Jamile voltou à casa da mãe, que buscara seus filhos na escola enquanto ela se distraía no salão de beleza se embelezando para ninguém."


Jamile está afogada na rotina doméstica, em especial, no cuidado com os filhos enquanto Antônio, seu marido, vive num mundo à parte, distante dos problemas da casa, envolvendo-se o mínimo possível com os filhos e com Jamile, omitindo-se de compromisso afetivo e tudo mais o que compete à vida conjugal.

Após cogitar uma separação, Jamile decide seguir os "conselhos" das colegas de salão de beleza, dar vazão à curiosidade e navegar na internet, especificamente, em sites de relacionamentos extraconjugais.


"Jamile apenas sorriu. Era fato que ela se arrumara um pouco além do convencional para encontrá-lo, mas nada que destoasse do seu jeito de se compor. Nunca pensara em si como uma pessoa requintada, mas, de fato, suas roupas não eram mais compradas em lojas populares como antes, suas unhas estavam sempre bem feitas e ela se maquiava de forma elegante e discreta. Sim, talvez fosse refinada. Gostou de João ter notado."


Engana-se quem pensa que Insídia resume-se a contar uma história sobre infidelidade conjugal. De maneira gradual, somos inseridos no universo de Jamile, afundando em seu estado de melancolia. O modo como ela existe e se conecta com aqueles com quem se relaciona reflete mais do que uma personalidade individual: reflete uma humanidade vazia de relações legítimas, preenchidas com a conformidade de um status ou distraídas com afazeres efêmeros da vida. E não só Jamile, mas todos os personagens envolvidos são apresentados como participantes dessa dinâmica, que é retrato fiel da contemporaneidade de uma sociedade misógina.


"Às vezes ele parecia não se lembrar de que namorava uma mulher casada. Fazia ligações quando ela não podia atender e se irritava por ter sido ignorado. Em certas situações, queria passear com ela pelas ruas e não fazia nenhum esforço para esconder sua frustração quando ela se negava. O sorriso encantador dos primeiros encontros se tornava cada vez mais raro."


O clima de suspense e de que algo muito errado está para acontecer a qualquer momento permeia o livro, segurando o leitor do início ao fim. A construção dos personagens faz com que nossos sentimentos por eles oscilem a todo momento: algo próprio da composição de personagens com atitudes fidedignas de pessoas reais, o que torna o desfecho do enredo ainda mais impressionante.


"Envoltos num misto indescritível de sentimentos, se amaram naquela noite como já nem lembravam serem capazes."


Insídia é uma leitura atual e importante a contemplar uma sociedade que continua dando errado em muitos aspectos, apesar dos progressos. O livro é concorrente do 6º Prêmio Kindle de Literatura 2021. Li pelo KU.



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