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Foto do escritorEliza Edgar

Onde nos escondemos.

Análise de Em pele de cordeiro, de Andreia Evaristo.

“Eu queria contar uma coisa... Mas eu não contei isso para ninguém ainda. Não sei como as pessoas podem reagir.”


O quanto uma vítima precisa parecer uma vítima para seu relato ter valor? Quantas mulheres e meninas, todos os dias, padecem a pena de precisarem provar que foram molestadas, enquanto que a seus assediadores basta não levantar suspeitas? Perguntas que parecem ter respostas óbvias e também reveladoras de nós mesmos, de como encaramos esse tipo de situação. Para muitos, a roupa com que a vítima estava tem peso semelhante ao do crime que ela sofreu.

O livro que trago hoje é uma provocação ao nosso senso de juízo para essa questão.


"Ele avança sobre mim, me beija. Não quero que seja assim. Eu preciso reassumir o controle. Sua língua força a passagem entre a abertura da minha boca, e deixo que ela invada esse espaço. Quando sinto seu joelho tentando se embrenhar por entre minhas coxas, percebo que é hora de retomar minha atitude."


A paixão de Louise Carmin é atuar como voluntária na C.A.V.E.R.N.A. (ou Centro de Apoio às Vitimas de Estupro Regina Novais de Albuquerque). Embora se perturbasse com os relatos, poder ajudar mulheres vítimas de violência sexual era algo que fazia-a se sentir viva; uma alegria era ser alguém em quem elas pudessem confiar.

Louise era uma mulher bem casada, tinha uma filha bem-criada e era uma arquiteta bem-sucedida; desfrutava de plenitude profissional até o momento em que sua empresa se incorporou à Lupus Incorporações. Louise agora teria um novo chefe, Aurélio Lobo, um rastro do passado, homem cuja presença bastaria para desestruturar a vida de Louise por inteiro.


“O pessoal está dizendo que você anda azeda, que reclama de qualquer coisa. Mas, quando eles foram contratados por Lobo, ele prometeu que o trabalho criativo na arquitetura seria mais leve, mais tranquilo. Quer seria até mesmo divertido – como na Google, sabe? E não é isso que está acontecendo.”


A narrativa oscila entre passado e presente, também entre os pontos de vista de Louise e Aurélio. Os pontos de vista são limitados aos personagens, o que conduz o leitor à pura perspectiva deles, ampliando o suspense e a sensação de que algo está muito errado.

Louise é uma personagem espetacular em muitos sentidos, a começar por sua mudança de comportamento assim que passa a ter de conviver com Aurélio. Ela nem de longe procura retratar uma pessoa perfeita (e irreal): sob pressão, toma decisões que muitos de nós, em situação semelhante, tomaríamos.Tal proximidade faz com que ela seja aquele tipo de protagonista que, embora devêssemos nos empatizar pelo que ela passa, causa certa antipatia.

E é exatamente aí que o livro acerta.

É muito fácil amarmos a vítima indefesa e de coração bom, que confere perdão à pessoa que lhe fez mal. Também é fácil amarmos a vítima que demonstra o sofrimento de uma maneira socialmente esperada. Mas parece ser inaceitável que a vítima tenha pensamentos de vingança e que deseje o mal a quem lhe machucou. Com o desenrolar do texto, Louise demonstra ter um psicológico tão atormentado, que seus sentimentos e ações se distanciam de uma personalidade que chamaríamos de politicamente correta.


"Nem sempre. Às vezes, a semente que deixamos no passado volta germinada e verdejante para nos visitar em nossa própria casa no fim-de-semana."


O livro tem muitas reviravoltas, é impossível ficar entediado. Uma delas, em especial, mexeu muito comigo a ponto de dar calafrios (mas se eu mencionar o que é, a galera que não curte spoilers vai ficar brava). Apesar de não conter cenas explícitas de violência, é importante mencionar que o modo como o tema (violência contra a mulher) é tratado pode mexer com pessoas mais sensíveis. Leiam preparados.

Li pelo KU.


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1 Comment


Andreia Evaristo
Andreia Evaristo
Aug 06, 2021

Eliza Edgar, muito obrigada por compreender tão bem cada uma das minhas linhas e entrelinhas. Confesso que me angustia ter de explicar a alguém que ninguém merece ser estuprado, que a vítima pode ser quem for e o estupro continuará a ser estupro. Não importa se eu gosto da pessoa ou não, se ela é querida ou uma megera, se é um docinho de coco ou uma vigarista - estupro é estupro e ponto final.

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