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Foto do escritorEliza Edgar

Os monstros que nos habitam.

Análise de O Valete de Espadas: volume único, de Jadiael Viana.

"O cheiro de éter continuava nas suas narinas, impregnando até mesmo as bordas do seu espírito. Sentado na penteadeira, Danilo cravou os olhos no espelho. Para além da superfície enevoada, o rosto pálido, moldado com traços inexpressivos, trazia os ares de uma apatia profundamente calculada. Bem mais que um simples truque, subterfúgios da teatralidade, um artifício poderoso o bastante para promover a ilusão de uma beleza quase real."


"Todas as pessoas, inclusive as boas, já foram vilãs na história de alguém" é uma afirmação famosa e altamente propagada por aí. Ainda que eu desconheça sua autoria e origem, ela é perfeita para definir a saga que trago hoje. Corra para pegar algumas coisinhas pra mascar, pois embaraçada é a rede de intrigas, complexo é o jogo de manipulação e profundas são as covas da vingança.


"A um giro no prisma, o problema tornava-se ainda mais grave. Sob a fina camada do verniz social, aplicada pela mão da falsa congruência, a complexa rede de atividades ilícitas que envolvia a Houston Diamonds transformava o portentoso edifício numa grande sede para a recepção de diamantes sangrentos."


A obra é composta pelos três volumes da saga O Valete de Espadas, formando um colosso de 1.143 páginas; a edição foi uma decisão acertada, pois a história tem uma estrutura contínua ligada, em que cada livro propõe encerrar um ciclo de acontecimentos. Nisso, ganchos deixados propositalmente pelo autor no encerramento dos dois primeiros volumes fazem com que o leitor sinta a necessidade de prosseguir na história para saber o desenrolar daquele mar de problemas.


"Um beijo sôfrego, árduo, sacramentou aquela promessa no âmago da sua alma. Juras de um amor eterno, que o romper dos anos se encarregaria de transformar em palavras de maldição. O roçar dos lábios se intensificou; tornou-se bruto, selvagem, violento. Junto às voltas que o mundo dava, as bocas só se afastaram uma da outra quando já estavam bem vermelhas. Feridas, machucadas."


A mãe hospitalizada e necessitada de um transplante de coração é a motivação para Danilo Soares vestir a máscara de Cavaleiro Negro e subir no palco da boate Nefertiti. Um buquê de flores na bancada do camarim do jovem marca o início de sua jornada sem volta a um abismo mais profundo do que ele imagina.

Danilo aceita jantar com o remetente do buquê, Samuel Houston, o chamado "príncipe dos diamantes", com quem se envolve de uma forma um tanto passional; tanto Danilo como Samuel exalam paixão e desejo — de tudo, em todos os sentidos. E aqui vale destacar o fato de ambos viverem um relacionamento corrosivo sem darem conta disso.

Não pense que isso basta: a coisa fica feia mesmo quando Danilo se casa com Samuel e penetra a família Houston; descobre estar ligado a ela de uma maneira tenebrosa, que envolve um passado obscuro de sua mãe. A partir de então, uma série de eventos em cadeia contribui (contribui, grave bem essa palavra) para a evolução do monstro que habita o jovem.


"Desde que os seus objetivos fossem atingidos, os fins tornavam os meios bem mais do que justificáveis."


A narrativa em terceira pessoa permite que as mentes dos personagens sejam exploradas de forma esférica, o que os humaniza a ponto de o leitor não conseguir tomar partido a favor ou contra ninguém; empatia e aversão são sentimentos postos à prova, em especial, para com Danilo, o protagonista-maior.

Todos os personagens de O Valete de Espadas são anti-heróis, e isso dadas as motivações deles, que são legítimas, mas apenas para o universo umbiguista de cada um. Um bom exemplo é o próprio Danilo, que recorre ao tráfico ilegal de órgãos para conseguir um coração novo para sua mãe.

A família Houston é um show à parte, vive em pé de guerra: é uma alfinetada daqui, outra tirada de lá… sabe aquele almoço em que se reúne todos os parentes que se odeiam? Agora imagine todos falando o que vem à cabeça sem filtro. É um dia comum na família Houston.


Por volta dos 50% da narrativa, uma tragédia colore o livro e nosso protagonista-maior, Danilo, com tons sombrios; e, a partir de então, nem os diálogos carregados de deboche são capazes de aliviar o peso da história. É o momento chave em que Danilo, enfim, se apodera da alcunha Cavaleiro Negro e passa a buscar a vingança por cada lágrima caída.


"Na estância dos fins improváveis, o problema de se medir força com alguém poderoso, é que, uma hora, corre-se o sério risco de ficar sem o braço."


O corpo narrativo tem uma linguagem rebuscada, que atribui elegância à obra e ressalta o requinte dos atos bárbaros dos personagens. Já os diálogos têm por base a língua falada, o que atribui uma maior naturalidade e, por consequência, equilibra o texto. Tal característica somada à intertextualidade, ecletismo e temáticas do cotidiano tornam a obra uma representante da Literatura Contemporânea, que vale a pena ser conferida pelos amantes de grandes (e marcantes) histórias.


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2 Comments


Jadiael Viana
Jadiael Viana
Jul 19, 2021

Que texto maravilhoso! Uma verdadeira obra de arte. Nem sei se eu mereço tanto. Eu vou imprimir, emoldurar e pendurar na parede. Obrigado, Eliza. Do fundo do meu coração.

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Eliza Edgar
Eliza Edgar
Jul 19, 2021
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