Hoje o chinelo do meu filho arrebentou na rua, enquanto voltávamos da escola pra casa; arrebentou, não, o solado do chinelo partiu ao meio. Até agora estou tentando entender o que aconteceu, pois ele é novo, estava inteiraço!
Deixando o mistério virar energia pra reclamar na Ipanema mais tarde, o desfecho disso foi que dei meus chinelos pro Sr. Edgar voltar o trajeto sem reclamar demais (pois reclamando do calor e da distância ele já estava).
Vocês não têm noção de como as ruas aqui do meu bairro são péssimas pra andar: xinguei o prefeito, as pessoas que não fazem a própria calçada, o povo que quebra garrafa na rua… nunca havia passado pela minha cabeça o quão sofrido é andar descalça na rua porque eu nunca havia andado descalça na rua. Okay, nunca é um pouco demais… andei algumas vezes quando era criança. Mas eu não me lembrava da sensação de ter os pés feridos por pedriscos, concreto e pisos. Durante o trajeto, pensei em quantas formigas ou outros pequenos insetos eu poderia estar pisando sem sentir, em como um pedaço de borracha nos protege de sentir o solo em seu estado real.
O verdadeiro desafio de se escrever bem não está na gramática e suas regências, concordâncias e virgulação; não está em criar um universo único, com dezenas de leis e raças diferentes; não está em ter disciplina para escrever uma quantidade X de caracteres diários. Já conversamos em posts anteriores sobre a Sra. Verossimilhança, como ela é e funciona. E esse papo todo de andar descalço tem a ver com a aplicação de verossimilhança externa.
"Como assim?"
Pra escrever, mais do que dominar técnicas de escrita, você precisa sentir o personagem, sentir a história que você quer escrever, sentir de verdade, ainda que você nunca tenha passado pela situação específica apresentada na obra.
Isso é remover o solado de borracha: desacreditar do que acredita, experimentar o que não gosta, submeter-se a sacrifícios grandes e pequenos em prol da autoridade do discurso, de saber o que fala, conhecer realmente o terreno em que está pisando.
Tudo para o mais próximo do perfeito.
Nem me fale em chinelo arrebentado kkk
Meu irmão era o chamado pé de foice.
Cada ida ao mercado era um chinelo